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Deus endureceu o coração de pedra de Faraó



Lutero mesmo teve dificuldades com este assunto

Romanos 9! Uma hora ia chegar, não? Não há como debater sobre “livre-arbítrio” sem falarmos de Jacó e Esaú e do famoso “endurecimento de Faraó”. Neste terceiro capítulo, Lutero trata da interpretação de Erasmo de Romanos 9 e dos textos lá citados, Êxodo 9.12 e Malaquias 1.2-3.

Mas antes de começarmos, devemos reconhecer que este certamente não é um assunto fácil. O próprio Lutero confessa, com imagens fortes, o conflito interior que teve, mais de uma vez:

Naturalmente, os homens objetarão ao pensamento que Deus – que é bom – os possa abandonar, endurecer e condenar, como se Ele tivesse prazer com os pecados e tormento eterno deles. Já tropecei, eu mesmo, nesse ponto por mais de uma vez, caindo no mais profundo poço de desespero, desejando nunca ter nascido. (Isso sucedeu antes de eu reconhecer quão saudável é esse desespero, e quão próximo ele está da graça divina.) Essa é a razão pela qual os homens têm tentado encontrar “explicações” e manter seus próprios raciocínios em detrimento do que é plenamente ensinado pela Palavra de Deus.

Conduto, somos chamados a conhecer a Deus e adorá-lo em toda a sua majestade. Não podemos deixar uma parte de lado, porque não gostamos ou porque é muito difícil. “Conheçamos, e prossigamos em conhecer ao Senhor” (Os 6.3), reconhecendo nossas limitações e pedindo o auxílio da graça divina.
Deus endureceu o coração maligno de Faraó

Como dissemos, Lutero irá contestar a interpretação de Erasmo sobre Romanos 9. Primeiramente, Lutero acusa Erasmo de interpretar “as palavras: ‘…eu lhe endurecerei o coração…’ , como se elas significassem: ‘Minha longanimidade, mediante a qual tolero o pecador, e que leva outros ao arrependimento, faz apenas com que Faraó torne-se cada vez mais obstinado em sua impiedade’”, e de inverter o sentido de “endurecerei o coração de Faraó” para “Faraó endurecerá o seu próprio coração” (70).

Lutero afirma que devemos aceitar o sentido mais claro do texto a menos que tal explicação seja absurda (69) e que o sentido claro do texto é:

Quando Deus disse: “Endurecerei o coração de Faraó”, Ele estava dizendo: “Farei com que o coração do Faraó se endureça”. Deus, com a mais absoluta certeza, sabia e, com a mais absoluta certeza, declarou que o coração do Faraó se endureceria. Com idêntica certeza, Deus sabia que o Faraó não poderia impedir as ações divinas contra si. E Deus igualmente sabia que, como resultado disso, o Faraó certamente tornar-se-ia pior. Uma vontade maligna pode querer somente fazer o mal. Mesmo quando Deus traz algum bem para exercer uma influência benéfica — como no caso do evangelho — a vontade maligna só pode tornar-se pior. Ela torna-se mais endurecida. (75)

Agora, é importante fazer uma observação. Alguns de vocês possivelmente estão pensando, “como Deus poderia fazer isso com um coração puro? Deus tornou o coração de Faraó mau?” Não é isso que Lutero está afirmando, pois não há “coração puro” no homem caído! O fato de Deus endurecer o Faraó não significa que Deus está endurecendo um coração neutro. Lutero afirma repetidamente que Deus estava endurecendo um coração perverso! Eis a resposta de Lutero:

“A minha resposta é que, à parte da graça da eleição, Deus trata com os homens em consonância com a natureza deles. Visto que a natureza deles é maligna e pervertida, quando Deus os impulsiona para que entrem em ação, seus atos são malignos e pervertidos.” (73)

“Deus não cria uma nova maldade no coração dos homens. Antes, Ele se utiliza do mal que já se encontra no coração deles, visando aos seus próprios bons e sábios desígnios.” (74)

Resumindo, Deus endurece, sim, o coração de Faraó, mas isso não se opõe à natureza de Faraó. Deus endurece um coração de pedra.
Por que Deus não altera então a vontade perversa de pessoas como Faraó?

Eis o que Lutero diz:

Por que Deus não altera a vontade perversa de pessoas como Faraó? Essa questão toca na vontade secreta de Deus, cujos caminhos são inescrutáveis (Rm 11.33). Se alguém que é orientado por sua razão humana, fica ofendido por causa disso, que assim seja. As queixas nada mudarão, e os eleitos de Deus permanecerão inabaláveis. Poderíamos também perguntar por que Deus deixou que Adão caísse! Não devemos tentar estabelecer regras para Deus. Aquilo que Deus faz, não é correto porque o aprovamos, mas porque Deus assim o desejou.

Se Deus previu algo, esse evento pode ser alterado?

Lembra que eu sugeri separarmos as esferas de discussão sobre livre-arbítrio: salvação e providência? Aqui, o debate migra para providência. A pergunta que nos devemos fazer é: se Deus previu algo, esse evento pode ser alterado?

Para Lutero, a presciência divina elimina o “livre-arbítrio” (76-77) e se este existe, então Deus “seria uma divindade muito débil e patética se a sua presciência fosse indigna de confiança, e se pudesse ser contrariada pelos acontecimentos” (78).

Porém, quando Deus prevê alguma coisa, ela acontece porque Ele assim previra. Se você não aceita isso, mina todas as ameaças e promessas de Deus. Você nega o próprio Deus. (77)

A razão natural precisa admitir que Deus seria uma divindade muito débil e patética se a sua presciência fosse indigna de confiança, e se pudesse ser contrariada pelos acontecimentos. (78)

Erasmo afirma que “na inquebrantável presciência de Deus, Judas foi fatalmente destinado a tornar-se um traidor; mesmo assim, Judas era capaz de mudar a sua vontade”. Lutero acha isso contraditório, pois se Judas pudesse mudar sua vontade, então Deus teria previsto errado. Ou seja, se Deus previu A, poderia B acontecer? Se a resposta é não, para Lutero, o homem não pode ter “livre-arbítrio”.
Amei a Jacó e aborreci a Esaú

Vamos para o próximo texto polêmico: “amei a Jacó e odiei (ou aborreci) a Esaú”. Uma das respostas de Erasmo continua muito comum hoje: “o ódio de Deus não é igual ao do homem” (hoje as pessoas afirmariam que “odiar significa amar menos”). Mas, como Lutero aponta, essa não é a questão! Ele diz: “Ora, todos sabem que o amor e a ira de Deus não se assemelham às paixões humanas; porém, a questão com que ora nos defrontamos não requer que perguntemos como Deus ama ou odeia, mas por que Deus ama ou odeia” (81).

Ou seja, você está fazendo a pergunta errada. Mesmo que aborrecer signifique “amar menos”, a grande questão não é essa, mas, sim, por que Deus aborreceu, odiou, amou menos (como queria).

Então, por que Deus aborreceu Esaú? A resposta usual é que Esaú era perverso. Sim, isso é um fato, mas não é isso o que o texto de Romanos 9 diz! Eis o que Lutero responde:

“O amor e a ira de Deus não estão sujeitos a alterações, conforme ocorre conosco. Em Deus, ambos são eternos e imutáveis. Foram fixados muito antes que o “livre-arbítrio” fosse possível. Vemos nisso, que nem o amor nem a ira de Deus esperam pela reação humana, mas antecedem à mesma. […] O que poderia ter feito Deus amar a Jacó ou odiar a Esaú? Certamente, não por qualquer coisa que eles tivessem feito, pois a atitude de Deus para com eles foi estabelecida e declarada antes mesmo de terem nascido, e não havia muita atuação do “livre-arbítrio” naquela ocasião! (81)

Cada vaso em seu lugar

Por fim, temos o texto do vaso para honra e para desonra. Erasmo puxa 2 Timóteo 2.20-21 (“Se alguém se purificar dessas coisas, será vaso para honra”) para mostrar que o vaso de Romanos 9 tinha livre-arbítrio, pois purifica a si mesmo. Ou seja, texto fora de contexto. Lutero mostra como os textos estão falando de coisas totalmente distintas, apontando que 2 Timóteo fala sobre “a piedade pessoal do crente” (83).
Mas isso é injusto!

Muitos respondem que essa interpretação tornaria Deus injusto. E é justamente o que Paulo antecede na discussão de Romanos 9. Lutero diz:

Agora você apela para o raciocínio humano. Não pode aceitar o direito que Deus tem de lançar os ímpios no fogo eterno. Pois, conforme você sugere, isso não é razoável, porque Deus criou os ímpios conforme eles são. E assim a verdade vem à tona! Você assume a mesma postura dos queixosos, que Paulo cita, em Romanos 9.19: “De que se queixa ele [Deus] ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” Isto posto, a razão humana demanda que Deus aja de acordo com as ideias humanas acerca do que é certo e do que é errado; e o Soberano que criou todas as coisas deve submeter-se à sua própria criação!

[…]

Quando Deus salva aqueles que merecem a condenação, ninguém reclama. Mas, quando Deus os condena, ouve-se um grande protesto. (84)

Martinho Lutero- NASCIDO ESCRAVO


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