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A presença de Cristo na Ceia

A presença de Cristo na Ceia

Um dos escritos mais importantes de Anne, valoroso por sua piedade eucarística, é Pensamentos sobre a Ceia do Senhor, quanto à natureza, aos sujeitos e à participação correta dessa ordenança correta, que foi publicado anonimamente em 1748. Como observamos no Capítulo 1, uma das questões que causavam mais divisão entre a Igreja Católica Romana e os Reformadores, assim como entre os próprios Reformadores, era a natureza da presença de Cristo à Mesa. Embora todos os Reformadores rejeitassem o dogma romano da transubstanciação, não concordavam sobre o que realmente acontece durante a celebração da Ceia do Senhor. Na visão de Martinho Lutero (1483–1546), o corpo e o sangue de Cristo estão presentes “dentro, com e debaixo” do sangue e do vinho. Contrariamente ao dogma romano da transubstanciação, o pão permanece pão; apesar disso, de alguma forma, também contém o corpo de Cristo após a oração de consagração. Assim, o vinho contém o sangue dele depois dessa oração, embora permaneça vinho. O reformador suíço Ulrico Zuínglio (1484–1531), por outro lado, considerava o pão e o vinho essencialmente símbolos do que Deus realizou por meio da morte de Cristo, e a Ceia, portanto, é principalmente um memorial. Em discussões recentes acerca da perspectiva de Zuínglio quanto à Ceia do Senhor, geralmente defende-se que Zuínglio não era de fato zuingliano; ou seja, ele viu mais na Ceia do Senhor do que simplesmente um memorial. No entanto, seja qual for a posição de Zuínglio, surgiu uma tradição a partir daqueles aspectos de seu pensamento que enfatizava fundamentalmente a natureza memorial da Ceia do Senhor.

Uma terceira visão que buscava atingir um meio-termo entre Lutero e Zuínglio e evitar um distanciamento permanente entre luteranos e zuinglianos era a de João Calvino (1509–1564). Na perspectiva de Calvino quanto à natureza da Ceia do Senhor, o pão e o vinho são símbolos e garantias presentes de uma realidade. Para aquele que come o pão e bebe o vinho com fé, é transmitido o que eles simbolizam, a saber, Cristo. O canal, na verdade, por meio do qual Cristo é expresso ao crente é tão somente o Espírito Santo. O Espírito age como um tipo de elo ou ponte entre os crentes e o Cristo, que ascendeu ao céu. Cristo é recebido pelos crentes na Ceia “não porque é inerente aos elementos, mas porque o Espírito Santo une os crentes” a ele. Mas, sem fé, o que se recebe são meros elementos.

A obra de Anne Pensamentos sobre a Ceia do Senhor constitui uma das melhores exposições de Calvino do século XVIII. Dutton dedica a primeira seção de seu tratado de sessenta páginas sobre a Ceia do Senhor para esboçar sua natureza. Nessa seção, argumenta que a Ceia é, entre outras coisas, uma “comunicação”. “Visto que o nosso Senhor está espiritualmente presente em sua própria ordenança”, escreve ela, “então de fato se comunica desse modo, ou se entrega, seu corpo partido e seu sangue derramado, com todos os benefícios de sua morte, aos receptores dignos”. Aqui, Dutton afirma que Cristo está de fato presente na celebração de sua Ceia e faz dela um meio da graça para aqueles que participam dela com fé. Como ela afirma adiante no mesmo tratado: na Ceia do Senhor, “o Rei se alegra de sentar conosco, à sua Mesa”.

Sua base bíblica se encontra em 1 Coríntios 10.16, que ela interpretou corretamente ao sugerir a presença de Cristo à Mesa. Nessa passagem, Paulo argumenta que os cristãos não deveriam acreditar que a adoração aos ídolos é inofensiva porque os deuses pagãos não têm real existência no mundo. Em 1 Coríntios 8.5, Paulo tinha afirmado que a cultura greco-romana conhecia “muitos ‘deuses’ e muitos ‘senhores’” no céu e na terra. Porém, prossegue o apóstolo no versículo seguinte, apesar daquilo em que seus contemporâneos gregos e romanos acreditavam, seus irmãos cristãos e ele estavam certos de que havia apenas “um Deus e um Pai” e “um Senhor Jesus Cristo”. Quanto aos deuses gregos e romanos, a Igreja antiga reconhecia que eles não tinham, segundo as palavras de Paulo, “existência real” (1Co 8.3). Sem dúvida, eles “existiam” para aqueles que os adoravam, mas, sob a perspectiva da realidade, simplesmente não existiam. Eles eram, como Paulo afirma em seu discurso no Aerópago, uma defesa clássica da perspectiva cristã sobre a vida, “uma imagem formada pela arte e a imaginação do homem” (At 17.29). Apesar disso, Paulo prossegue argumentando em 1 Coríntios 10, isso não significava que a religião pagã fosse inofensiva. Na verdade, aquele era “o locus da atividade demoníaca, e… adorar tais ‘deuses’ é, na verdade, ter comunhão com demônios” (1Co 10.19-20). E, para ilustrar seu argumento de que a adoração de ídolos envolve a presença de outros seres além dos adoradores, Paulo dá o exemplo da adoração no templo no Antigo Testamento e na Ceia do Senhor. No último caso, seu argumento supõe que a adoração na Ceia do Senhor envolve a presença do Senhor Jesus.

Ele valoriza tão grandemente esse meio da graça que Anne pode afirmar, de uma forma que outros batistas calvinistas de sua era poderiam descrever como certo exagero, que a celebração da Ceia do Senhor “admite” crentes “na aproximação mais íntima ao seu ser glorioso (ou seja, de Cristo), que nós podemos fazer em um caminho de ordenança na Terra, nesse lado da sua glória no Céu”.  A linguagem de Anne pode soar extravagante para alguns, mas revela, creio, algo da intensidade espiritual que estava disponível às congregações batistas em meados do século

XVIII. De fato, um dos poucos efeitos negativos do Reavivamento Evangélico pode ser a maneira pela qual essa espiritualidade da Mesa foi diluída na urgência de tornar igrejas centros de evangelismos.

A centralidade de Cristo e a centralidade da cruz permeiam todo o tratado. Para dar apenas um exemplo: “Ó que plano maravilhoso”, declara ela logo no início do livro, “que plano doador de vida em seu próprio sangue precioso, Deus nosso Salvador, o Senhor que nos ama, dá aos pecadores que estão morrendo, aos seus amados nessa gloriosa ordenança”.

Por: Michael Haykin. © Editora Fiel. Website: editorafiel.com.br. Traduzido com permissão. Fonte: Anne Dutton e suas obras teológicas: A presença de Cristo na Santa Ceia. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados.

Michael Haykin é professor de história da igreja e espiritualidade bíblica no Southern Theological Baptist Seminary, em Louisville, Kentucky, onde também trabalha como diretor do Centro de Estudos Batistas Andrew Fuller. Haykin é autor de inúmeros livros.

Fonte: Voltemos ao Evangelho

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